Magnetismo social
Por intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam a uma escritura abundante, a uma leitura inventiva deles mesmos e de seus mundos(...) poderemos então pronunciar uma frase um pouco bizarra, mas que ressoará de todo seu sentido quando nossos corpos de saber habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.” E nós seremos um povo tanto mais livre quanto mais nós formos um texto vivo.
Pierre Lévy
É inevitável fazer uma análise social da era pós-moderna sem considerar a liquidez vigente. A globalização e o aprimoramento tecnológico são fatores contribuintes para a superficialidade das relações humanas e as individualidades que as formam.
Zigmunt Bauman, ao fazer racional e inteligente crítica à sociedade atual, identifica como voláteis as relações sociais, os objetivos e as personalidades presentes nelas. A necessidade de não ser vazio e de não querer se fazer distante de qualquer assunto, torna a busca pelo conhecimento rasa e frívola.
Busca-se não uma compreensão profunda e objetiva dos fatos, mas sim uma superficialidade vinda de uma falta de determinação e tempo, devido a acronia – termo utilizado por Virílio, filósofo francês, para expressar a necessidade de instantaneidade – de opinião, não enraizada e estável, mas geral de insuficiente, para que se possa estar integrado a todos os assuntos mundiais que constantemente surgem em nossas telas.
Percebe-se tal liquidez social nos manifestos brasileiros, como o que visou o impeachment da presidenta, tanto quando se observava uma maioria lá presente que esperava segundas eleições (o chamado terceiro turno) e não a posse do vice presidente, quanto ao vermos o discurso de ódio opositor presente nas redes sociais por semanas, se dispersar e ser transformado em qualquer novo assunto que o jornal noticia. São discursos, esses, intelectualmente leigos, que não se aprofundam na causa de forma efetiva, mas aderem-nos devido a uma liquidez e dissolução em busca de participação em algum lado do movimento, ou ter algo pra conversar e criticar na fila do banco.
A procura por resultado e lucro imediatos nos fazem não seres pensantes, que planejam e sabem esperar, mas seres mecanizados, que procuram meios tolos de chegar ao objetivo desejado, que, na maioria das vezes, constituem em planos de curto prazo, e nos dão a ilusão de prazer e reconhecimento conquistados, quando, na verdade, estamos fazendo o que a globalização nos condiciona a fazer, buscar sempre mais, sem saber se a necessidade é real.
René Magritte, em seu famoso quadro ‘’Ceci n’est une pipe’’, ao aliciar o homem à reflexão sobre objeto-imagem, faz também crítica à sociedade que se contenta com a imagem, a frivolidade, e despreza o objeto, a reflexão, o pensamento diversificado. O sentido complexo tem de ser desenvolvido através de vários filtros de interpretação que permitam uma mais sofisticada reflexão e análise. Uma imagem não é uma realidade. Um titulo de notícia lido no Facebook não é uma realidade, se o leitor não deixa a unilateralidade superficial de lado.
Doze anos depois, Salvador Dalí pintava ‘’A persistência da memória’’, sua obra mais significativa e reconhecida mundialmente. Nela, se observam formigas atacando o relógio do canto inferior esquerdo. Em uma das análises da pintura, as formigas significariam algo alternativo ao quadro, que não deveriam estar presentes. Essa alternatividade é a ansiedade e o nervosismo. Ansiedade essa de informação, de realização social, empresarial ou estudantil, que faz o homem buscar todas as suas necessidades de uma só vez, não dando atenção especial a nenhuma, não tratando nenhuma causa com sua devida individualidade. A ansiedade e o nervosismo citados podem, muitas vezes, atrasar a evolução humana.
Dalí, além de fazer pinturas que possibilitam diversas interpretações, muitas vezes explicava seus próprios quadros de forma que nem ele mesmo acreditava, para que críticos e observadores fossem indiciados e instigados a confrontarem sua análise, fazendo suas próprias reflexões e estudos sobre a obra, suas razões e objetivos. As pessoas, então, deveriam interpretar a obra de acordo com suas próprias experiências, esperava Dalí, e então criaríamos seres que não são condicionados por uma ‘’onda’’ de pensamento igual.
Essa metamorfose social, que nos prende e que de fato não será extinta tão facilmente, deve previamente ser minimizada, não de forma rasa, como o tentamos fazer, mas sim efetiva. Os meios de comunicação, que são os principais percursores dessa superficialidade, devem ser regulamentados pelo governo, peneirando, assim, informações sólidas de vazias.
‘’ Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado,
e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.’’
Nessa passagem de ‘’O Manifesto do Partido Comunista’’, se observa a condição humana de comodismo negativo levado pelo sistema vigente. Seguimos a onda de pensamento, seguimos o que os jornais melhor conceituados nos noticiam, seguimos o que o vizinho que se diz intelectual nos conta. Quando se fala em ‘’encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas’’, se fala no comodismo de aceitar tudo como está, sem procurar vias alternativas, porque talvez sejam complicadas demais, ou porque talvez exigiriam maior doação empírica de nosso ser, maior atenção, o que, nas leis abstratas da globalização, é repreendido.
Que seja pregada uma profundidade de conhecimento, não só por meio individual, mas por meios coletivos, como debates e problematizações, ambos os processos iniciados nas escolas, que podem assim formar adultos conscientes e preenchidos por uma opinião não tão volátil quando a globalização nos permite ter. Que se formem humanos, e não máquinas.